A editora usou uma imagem desenhada em um dos muros do chamado Beco do Batman, na Vila Madalena (zona oeste de São Paulo), para ilustrar uma reportagem sobre novos carros, em revista especializada no ramo automobilístico.
O problema é que a publicação fez algumas mudanças no mural original, retirando inclusive a assinatura do artista.
“Não se limitou a ré a reproduzir a imagem no bojo da revista. Fê-lo após ter introduzido, presumivelmente mediante manipulação digital da imagem, ao menos três modificações em diferentes pontos da pintura, descaracterizando e deformando a criação tal qual elaborada pelo demandante”, afirmou o relator. A decisão foi unânime. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-SP.
RELATOR
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: DESEMBARGADOR VITO GUGLIELMI
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APELANTE
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: EDITORA E DISTRIBUIDORA EDIPRESS LTDA.
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APELADO
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:
FREDERICO GEORGE BARROS DAY
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COMARCA
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: SÃO
PAULO / SANTANA
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8ª VARA CÍVEL
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DIREITO
AUTORAL. DIREITOS PATRIMONIAIS E MORAIS DE AUTOR.
REPRODUÇÃO DE OBRA DO TIPO 'GRAFITE' EM
FOTOGRAFIAS INSERIDAS EM MATÉRIA DE REVISTA AUTOMOBILÍSTICA EDITADA PELA RÉ. DIREITOS PATRIMONIAIS NÃO VULNERADOS. OBRA SITUADA PERMANENTEMENTE
EM LOGRADOURO PÚBLICO, CUJA REPRODUÇÃO
É LIVRE. INTELIGÊNCIA DO ART. 48 DA LEI 9.610/98. AUSÊNCIA, OUTROSSIM, DE INTUITO COMERCIAL DA REPRODUÇÃO, DADO O CARÁTER NITIDAMENTE JORNALÍSTICO
DA MATÉRIA. DIREITOS MORAIS, POR OUTRO LADO, VIOLADOS. IMAGEM REPRODUZIDA DA OBRA QUE FOI MANIPULADA DIGITALMENTE, AO PONTO DE RESTAR DESCARACTERIZADA E DEFORMADA. MANUTENÇÃO DA INCOLUMIDADE DA OBRA OU, AO REVÉS,INTRODUÇÃO
DE MODIFICAÇÃO SUPERVENIENTE QUE CONSISTEM EM PRERROGATIVAS PERSONALÍSSIMAS DO
CRIADOR (ART. 24, IV E V, DA LEI 9.610/98). DANO MORAL CARACTERIZADO, NA
HIPÓTESE, 'IN RE
IPSA', MEDIANTE A PUBLICAÇÃO. RESPONSABILIDADE
CIVIL DA RÉ
CARACTERIZADA. 'QUANTUM' ARBITRADO COM RAZOABILIDADE, PELA SENTENÇA. AÇÃO PARCIALMENTE
PROCEDENTE. SENTENÇA REFORMADAEM PARTE.
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1.
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Trata-se de
recurso, tempestivo e
bem processado,
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interposto contra
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sentença que
julgou procedente ação
de reparação de
danos
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patrimoniais e morais de autor, ajuizada por Frederico George Barros Day
em face deEditora e Distribuidora Edipress Ltda.
Narra a inicial
que uma gravura do tipo 'grafite', elaborada pelo autor e exposta em logradouro
público nesta Capital, foi objeto de adulteração e reprodução não autorizadas,
por meio fotográfico, em revista de grande circulação editada e distribuída
pela ré. A ação objetiva, nessa perspectiva, a condenação da ré a indenizar o
demandante em razão de lesão a seus direitos morais e patrimoniais de autor.
O juízo (fls.
209/214) entendeu ter-se caracterizado a aventada violação aos direitos do
autor. E fê-lo por considerar que o mural por ele elaborado sob a forma de
pintura 'grafite' serviu de pano de fundo para fotografias utilizadas, sem sua
autorização, para ilustrar matéria relacionada à divulgação de veículos em
revista especializada editada pela ré. Condenou-a, pois, ao pagamento de R$
3.000,00 (três mil reais) a título de danos materiais e de R$ 20.000,00 (vinte
mil reais) para a reparação do dano moral sofrido.
Inconformada,
apela a ré (fls. 219/238), sustentando a improcedência da demanda. Para tanto
sustenta, em resumo, que jamais obrou em violação a direito do autor da obra.
Argumenta, nesta esteira, que a pintura em questão, realizada pelo demandante,
acha-se permanentemente exposta em logradouro público, de maneira que sua
reprodução, ainda que não autorizada, não constitui vulneração a direito
autoral porque expressamente facultada pela Lei 9.610/98. Afirma ainda que a
obra foi retratada de maneira parcial e apenas para ilustrar, como cenário, as
fotografias de matéria publicada em revista automobilística, de modo que nunca
foi o principal objeto dos retratos e sequer teve intuito comercial, porque não
serviu de chamariz para a promoção do periódico. Acrescenta, outrossim, que os
direitos sobre as fotografias lhes foram devidamente cedidos pelo fotógrafo que
as realizou. Aponta, portanto, que por tais razões inexiste prejuízo material a
ser reparado. Finalmente, aponta que o demandante não demonstrou ser o artista
realizador das obras em questão e que, ainda que o seja, os fatos por ele
narrados não constituem dano moral passível de indenização. Conclui, pois, pela
reforma.
Recebido (fl.
243) e processado o recurso, vieram aos autos contrarrazões (fls. 246/268).
É o
relatório.
2. Ação
de reparação de danos
morais e patrimoniais
de autor, ajuizada por artista
plástico em razão da reprodução, supostamente indevida, de obra sua em
fotografias utilizadas pela ré para ilustrar matéria incluída em periódico
automobilístico por ela editado.
Julgada
procedente para condenar a ré ao pagamento de indenização pelo dano patrimonial
do demandante, arbitrado em R$ 3.000,00 (três mil reais) e, bem, pelo prejuízo
moral por ele sofrido, fixado em R$ 20.000,00, sobreveio o presente recurso da
ré.
O reclamo comporta parcial acolhida.
Em primeiro
lugar, pese embora o inconformismo da apelante, dúvida não resta quanto à
atribuição da autoria da obra em testilha ao demandante. No sentido, a Lei de
Direitos Autorais (Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998), para além de
alçar as “obras de desenho, pintura,
[e] gravura” à categoria de criações
intelectuais passíveis da proteção autoral, bem define o critério para a
determinação de sua autoria, na forma de seus artigos 7º, inciso VIII, e 12, verbis:
“Art. 7º São obras intelectuais protegidas as
criações do espírito, expressas por
qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido
ou que se invente no futuro, tais como:
[...]
VIII - as
obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética
[...]
Art. 12. Para se identificar como autor, poderá
o criador da obra literária, artística ou científica usar de seu nome civil,
completo ou abreviado até por suas iniciais, de pseudônimo ou qualquer outro sinal convencional” (g.m.).
E, na espécie, já
a exordial veio instruída por prova pré-constituída da autoria do mural feito
em técnica 'grafite', pelo demandante. Trata-se, com efeito, do pássaro
estilizado que faz o artista inserir em todos os seus trabalhos (fls. 13/20).
Não infirmada, a contento, tal circunstância pela apelante, caem no vazio suas alegações denegatórias da autoria intelectual da obra pelo apelado.
Em segundo lugar,
e estabelecida esta premissa, versa a demanda dúplice vulneração a direitos de
autor relativos à pintura: aos direitos patrimoniais do autor, consistentes na
reprodução não autorizada da obra no bojo do material editado pela ré em
revista automobilística de sua titularidade; e bem aos seus direitos morais,
circunscrevendo-se a violação ao fato de que a imagem da obra, para além de
meramente reproduzida, foi também eletronicamente modificada por técnica de
edição digital, ao ponto de deformar seus caracteres originais.
Quanto aos primeiros os danos patrimoniais, e ressalvado o entendimento do Magistrado da causa, não vislumbro ato ilícito praticado pela recorrente apto a
originar a pretendida reparação.
Como é cediço, a
razão de ser da proteção aos direitos de autor circunscreve-se à tutela do
interesse privado do artista, criador intelectual da obra enquanto manifestação
do espírito humano. Todavia e isso tampouco se nega essa salvaguarda obedece a
uma função social e há, pois, de ser exercida de maneira compatível com os
interesses da coletividade. Por essa razão é que, ao lado do licenciamento voluntário do uso da imagem da obra,
instituiu referido diploma hipóteses de licença legal doutrinariamente também conhecidas por exceções ao direito autoral, isto é, casos em que excepcionalmente se
afasta a tutela outorgada particularmente ao criador, em prol da utilização
livre e gratuita, independentemente de prévia autorização.
Uma dessas
hipóteses, por óbvio, que mais proximamente interessa ao desate da controvérsia
ora posta é aquela insculpida no artigo 48 da Lei de Direitos Autorais:
“Art. 48. As obras situadas permanentemente
em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas,
desenhos, fotografias e procedimentos
audiovisuais” (g.m.).
Pois bem. A obra
em questão e isso é incontroverso nos autos consiste em pintura elaborada pela
modalidade de 'grafite', permanentemente aposta sobre a face voltada à via
pública de muro limítrofe de construção situada à rua Gonçalo Afonso, no bairro de
Vila Madalena, nesta Capital. Trata-se, com efeito, de mural pintado sobre o
logradouro público popularmente conhecido como 'Beco do Grafite' ou 'Beco do
Batman', naquela localidade. É o que estão a demonstrar as fotografias
reproduzidas à fl. 7 e, mais especificamente, às fls. 14/15.
Lícita, portanto,
a reprodução da imagem da obra em fotografia reproduzida no interior de
periódico editado pela apelante, independentemente de prévia autorização do
artista.
Nem se alegue e
este é outro argumento levantado pelo autor com a tese de utilização comercial
da imagem, especificamente para a aferição de lucro.
Não é este,
nitidamente, o caso. A edição de revista automobilística por editora
constituída sob a forma de sociedade empresária é, evidentemente, atividade
organizada voltada à consecução de lucro. A utilização da imagem em questão,
contudo, em que a obra aparece meramente a compor parte do cenário de ensaio
fotográfico que ilustra matéria de cunho eminentemente jornalístico não parece
ter servido, sob qualquer perspectiva, como atrativo de público ou fator de aumento
da vendagem do periódico.
A peça é de
jornalismo, registre-se, sem conotação publicitária alguma e trata de teste
comparativo entre as versões clássica e atual de automóvel esportivo. Trata-se,
ademais, de matéria interna, sequer constando houvesse chamada de capa a
reproduzir a foto em comento. Situação essencialmente diversa seria a de sua
reprodução na capa da revista ou, ainda, se se tratasse de peça publicitária
voltada à venda ou comercialização daquele modelo de veículo. Nessas hipóteses
sim, excluída a hipótese de licença legal
de reprodução da obra, tratar-se-ia de uso comercial, presumivelmente oneroso e
a depender de prévia licença por escrito de seu criador, na forma dos artigos
77 e 78 da Lei 9.610/98.
Dúvida não resta,
portanto, de que a reprodução da obra do autor nas fotografias publicadas e,
bem, no site da mesma revista se deu
dentro dos limites do artigo 48 do referido diploma legal, afastando-se assim a
pretensão à reparação pela aventada violação a direito patrimonial de autor, que
não se vislumbra.
No sentido, aliás, é a lição de FÁBIO ULHÔA COELHO:
“Quando
não se compatibilizam os interesses privados do autor, voltados ao monopólio na utilização de
sua obra, e o interesse público referente à difusão do conhecimento, educação e
cultura, este último tem, evidentemente, prevalência. São as hipóteses de licença
legal, em que a obra pode ser utilizada sem a prévia e expressa autorização do
titular do direito autoral e independentemente do pagamento de qualquer remuneração” (in Curso de direito civil, v. 4, 4ª. ed., São Paulo, Saraiva, 2012).
Por outro lado,
quanto à violação de direito moral do autor, tenho que a sentença
não comporta reforma.
Se os primeiros
patrimoniais enfeixam os interesses do titular em relação à exploração
econômica da obra, os segundos morais, ora em apreço são mesmo uma projeção da
personalidade do autor e encerram, assim, as prerrogativas referentes à relação
deste com a elaboração, titulação e divulgação da obra.
Dentre os direitos
morais do autor, elencados pelos incisos do artigo 24 da Lei de Direito Autoral
acham-se “o de
assegurar a integridade da obra, opondo-se
a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam
prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra” (inciso
IV) e, bem, “o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada” (inciso V).
Destarte, muito
embora constitua direito personalíssimo do autor a seu exclusivo alvitre a
manutenção da incolumidade da obra ou, ao revés, sua superveniente modificação,
tem-se que, in casu, não se limitou a
ré a reproduzir a imagem no bojo da revista. Fê-lo após ter introduzido,
presumivelmente mediante manipulação digital da imagem, ao menos três
modificações em diferentes pontos da pintura, descaracterizando e deformando a
criação tal qual elaborada pelo demandante. Tais alterações acham-se bem
identificadas pelas fotografias de fls. 26/29 e são apreensíveis mesmo a olho
nu.
Se compete ao
autor e apenas a ele modificar a criação quando lhe aprouver e, bem, vetar
alterações com as quais não consinta, é certo que as modificações operadas pela
apelante sobre a imagem da obra e que nem ela própria nega! se traduzem em ato
ilícito que deu azo a prejuízo em desfavor do autor, configurando-se in re ipsa.
A questão
relativa ao dano moral tem recebido intenso debate, especialmente depois da
vigência da atual Constituição Federal, caminhando, todavia, e sem maior
controvérsia, para a possibilidade de seu reconhecimento e caracterização nos
mesmos moldes da responsabilidade civil comum. Em outras palavras o dano moral
indenizável exige a conjugação de três fatores: dano, ilicitude e nexo causal.
Presente, pois, o dever de indenizar.
No dizer de
Humberto Theodoro Júnior (“Dano Moral”, 4ª edição, São Paulo, Juarez de
Oliveira, 2001, p. 31):
“Mais do que
qualquer outro tipo de indenização, a reparação do dano moral há de ser imposta
a partir do fundamento mesmo da responsabilidade civil, que não visa a criar
fonte injustificada de lucros e vantagens sem causa”.
Aliás, a
indenização nessas hipóteses, como assente doutrina e jurisprudência, se
justifica, de um lado, pela ideia de punição ao infrator, e, de outro, uma
compensação pelo dano suportado pelo comportamento daquele.
Aquele mesmo autor salienta que
“ .. ao
condenar o ofensor a indenizá-lo a ordem jurídica teria
em mente não só o ressarcimento do prejuízo acarretado ao psiquismo do
ofendido, mas também estaria atuando uma sanção contra o culpado tendente a
inibir ou desestimular a repetição de situações semelhantes” (op. cit.,
pág 33) grifos não constam do original.
Logo, tendo a ré
se utilizado indevidamente de obra intelectual dos autores, presente a
ilicitude de seu comportamento, a caracterizar sua responsabilidade.
Até porque, e como se preconiza,
“O fundamento primário da reparação está,
como visto,no erro da
conduta do agente, no seu procedimento contrário à predeterminação da norma, que condiz
com a própria noção de culpa ou dolo. Se o agente procede em termos contrários
ao direito, desfere o primeiro impulso, no rumo do estabelecimento do dever de
reparar...”
(Caio Mario da Silva Pereira, “Instituições de Direito Civil”, 8a. Ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1984, vol II, pág. 228) grifos não constam do original.
A fixação da
indenização, não se desconhece, é outra discussão que doutrina e jurisprudência
tem travado. Mas, com certo vigor, tem se orientado no sentido de que é tarefa
que incumbe exclusivamente ao juiz, na medida que o sistema tarifado não foi a
opção do legislador.
Essa dificuldade,
já anotada por Agostinho Alvim (Da Inexecução das Obrigações e suas
Conseqüências, 3ª ed., Jurídica e Universitária, São Paulo, 1965, p. 229): “Outra
objeção, esta de ordem prática, que se formula com a ressarcibilidade do dano moral, reside na impossibilidade de achar-se o
equivalente da dor”, e que o não o animava “... a teoria não está madura para ser formulada em termos gerais, de
modo a resolver o problema do quantum,
e outras dificuldades” (pág. 230 - o grifo é do original), de certo modo
não foi superada em relação ao
valor.
Nesse tema, a
indenização não deve ser tal que traduza enriquecimento sem causa, e nem tão
ínfima, que traduza, por via reflexa, despreocupação com eventual reincidência
na prática.
Em hipóteses como
a dos autos, de resto, e à falta de critério legal objetivo, sobrelevam as
condições econômicas das partes e a intensidade da culpa.
Presente essa
conjugação de fatores, e bem que o autor não se venha a locupletar da situação,
o quantum fixado pelo juízo não se
afasta do critério de razoabilidade e se mostra suficiente para a justa
reparação.
Nada mais é preciso dizer.
Em resumo:
ao recurso se
dá parcial provimento
para afastar a condenação da
apelante ao pagamento de indenização pelos danos materiais, mantida a sentença
em seus ulteriores termos.
Sucumbência adequadamente
fixada, não estando a merecer reparo sobretudo à falta de impugnação
específica.
3. Nestes termos, dá-se parcial provimento ao
recurso.
Vito
Guglielmi
Relator