A 3ª turma do STJ, em julgamento realizado na manhã desta quinta-feira, 4, decidiu favoravelmente ao desenhista, jornalista, chargista e escritor Millôr Fernandes, em causa contra a Editora Abril.
Millôr ajuizou ação contra a Editora por conta do projeto Acervo Digital Veja 40 Anos, lançado em 2009, por meio do qual o hebdomadário disponibilizou, de forma gratuita na internet, toda sua obra, desde a sua primeira edição em 1968.
Para Millôr, a então nova forma de divulgação teria violado seus direitos autorais, pois ele nunca autorizou a prática. A Editora, por sua vez, defendeu a inexistência do dever de indenizar, já que os periódicos nos quais aparecem os trabalhos do autor seriam obras coletivas.
Em 1º grau, o pedido foi baldado, ao argumento de que não seriam outras ou novas obras criadas ou modificadas pela editora, mas as mesmíssimas pelas quais o autor foi pago para produzir seus trabalhos intelectuais.
O TJ/SP, entretanto, reformou a decisão, por entender que se tratava de "uma nova utilização da obra a exigir, por óbvio, nova autorização e nova remuneração".
Recurso ao STJ
No STJ, o relator do recurso da Editora é o ministro João Otávio de Noronha. A Abril afirmou que o projeto Acervo Digital Veja 40 Anos presta um serviço de utilidade pública ao disponibilizar para a população em geral, de forma gratuita, a biblioteca da revista.
Segunda a editora, o direito do autor, assim como outros que contribuíram com a produção da revista, está respeitado e garantido, mas o direito individual de quem contribuiu com a obra coletiva não se confunde com o direito da Editora Abril, titular exclusiva da revista Veja.
A Abril alegou, por analogia, que assim como o leitor pode ir a uma biblioteca e consultar fisicamente qualquer exemplar da revista, também é possível acessar o site e ler a mesma edição: ambas com as mesmas publicidades, reportagens e artigos publicados. O acesso ao acervo digital é gratuito.
Proteção da obra individualizada
Há casos em que é possível identificar a obra individual na obra coletiva: a partir desta premissa, o ministro João Otávio de Noronha desenvolveu voto a favor da tese sustentada pelo espólio de Millôr.
“No caso dos autos, o que se tem são obras autorais individualizadas inseridas em obra coletiva, razão maior de serem asseguradas àquelas a devida proteção.”
Fazendo uma distinção entre a obra em coautoria e a obra coletiva, Noronha destacou que “a obra coletiva é reunião de vários autores, produzindo cada um deles tema determinado e cujas partes não precisam necessariamente ter ligação literária entre si”.
O relator fez questão de ressaltar o confronto entre o direito individual autoral versus o direito coletivo, consignado no valor histórico do material. E, embora pessoalmente considere que “em nome da cultura e da pesquisa histórica, tão relevante ao país, seria oportuno que se mudasse o artigo 36 [da lei de direito autoral]”, S. Exa. concluiu que a norma “reafirma que o escritor nessas obras periódicas recobre esses direitos autorais”. A propósito, vejamos o que diz o referido dispositivo:
"Art. 36. O direito de utilização econômica dos escritos publicados pela imprensa, diária ou periódica, com exceção dos assinados ou que apresentem sinal de reserva, pertence ao editor, salvo convenção em contrário.Parágrafo único. A autorização para utilização econômica de artigos assinados, para publicação em diários e periódicos, não produz efeito além do prazo da periodicidade acrescido de vinte dias, a contar de sua publicação, findo o qual recobra o autor o seu direito."
Autorização específica
Citando cláusulas do contrato, Noronha destacou que havia autorização para publicação do material uma única vez na edição da revista Veja.
“A autorização específica do autor da obra era apenas para o momento da edição da revista para a qual a criação foi feita. Ao publicar a obra na internet, houve evidente extrapolação do que contratado entre as partes, violando os direitos autorais.”
Os ministros Sanseverino, Cueva e Moura Ribeiro seguiram integralmente o voto do relator. Destacam:
Sanseverino - “O caso é realmente difícil. Trata-se de participação individualizada, teve contrato específico a respeito dessas questões, e essas cláusulas contratuais são objeto de interpretação restritiva da lei de direito autoral, e especialmente a regra do art. 36 da lei, é expressa em relação às obras publicadas pela imprensa diária ou periódica.”Cueva – “Até a grafia de seu nome [Millôr], a cada edição da revista Veja, mudava. Ele desenhava o próprio nome a cada edição, de maneira muito peculiar. Era um autor originalíssimo. Talvez convenha um dia mudar o artigo 36, certamente se fará esse debate. Lembro do projeto do Google de fazer uma biblioteca universal: chegou a digitalizar milhares de obras, o que seria um sonho, mas claro viola o direito autoral, tanto que foi engavetado. Não se encontrou ainda uma solução.”Moura Ribeiro – “Se a obra é coletiva, qual seria a razão para o contrato? O contrato foi feito excepcionando a regra da coletividade. Não é possível sustentar a tese quando a própria editora excepcionou esta ideia da obra coletiva.”
Mera fotografia
Divergindo da corrente majoritária formada, o ministro Marco Bellizze chegou a conclusão diversa ao interpretar o art. 36 da lei de direito autoral. S. Exa. afirmou que, em sua opinião, nem seria preciso alterar-se o dispositivo para acobertar o entendimento de que se trata de obra coletiva a revista Veja.
“O campo de aplicação do artigo 36 deve ser reservado para reprodução de escritos de forma individualizada. O que a Veja não poderia era fazer uma coletânea de artigos de determinado autor, uma publicação especial, por exemplo. Isso sim seria violação. Agora, digitalização, com os mesmos anunciantes, formatação da revista igual, com anunciantes que sequer existem... O art. 36 veda por exemplo pegar artigo antigo e publicar em obra coletiva e lançar em obra atual da Veja. Do contrário, jogaríamos por terra toda sistemática da lei, ao concluir que tendo artigo assinado não se trata de obra coletiva. O que temos é a mera fotografia e reprodução digital. Não vejo violação, nem aos termos da lei nem aos termos do contrato, com a digitalização.”
Assim, por maioria, foi negado provimento ao recurso da Editora Abril.
Fonte: Migalhas
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