terça-feira, 13 de setembro de 2016

Direito do Entretenimento - Judiciário não deve censurar programa de humor mesmo diante de cena de mau gosto


O juízo da 25ª vara Federal de SP julgou improcedente uma ação civil pública contra o programa humorístico "Show do Tom", da Record, por quadro protagonizado por um ator portador de nanismo, que satiriza o personagem principal.

O MPF alegou na inicial que tal quadro viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e ajuizou a ACP obter a condenação da emissora ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 6 milhões.
No decisum, o julgador considera o programa como “sucessão de cenas de mau gosto”, mais que “qualquer agressão a princípios jurídicos ou a preceitos de educação ou respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. “E, convenhamos, para mau gosto não há remédio jurídico que dê jeito.”
O fato de os atores com nanismo serem estapeados - como o são também outros figurantes - não caracteriza ofensa a essas pessoas (cujos profissionais estão, como os demais personagens, exercendo a respectiva profissão de ator), tanto que vários outros são também estapeados pelo "Capitão", o que faz a alegria do público.”
Para o julgador, se os estapeados fossem somente pessoas de estatura convencional, muito provavelmente a ação do MPF não teria sido ajuizada. “
Talvez a busca de proteção aos atores-anões (e não aos atores "grandes") decorra de um raciocínio equivocado e mesmo preconceituoso, consistente em supor, ainda que inconscientemente, que o anão, por essa sua condição, não seria dotado de plena capacidade de autodeterminação, a demandar, assim, especial atividade protetiva do Estado, ao ponto deste excluir a possibilidade do exercício de atividades ridicularizantes, as quais somente poderiam ser exercidas por pessoas de estatura "normal", porque (resta implícito) estas, sim, são dotadas de plena capacidade de autodeterminação.”
Lembrando que a própria subscritora da ação tem dificuldade em distinguir a coibição da ofensa e a censura, restou consignado na sentença:
Há mesmo imensa dificuldade em se fazer essa distinção e, diante dessa dificuldade, tenho que a atividade judicante, mesmo considerando as cenas como sendo de muito mau gosto, deve optar por não praticar censura e, no caso dos atores anões, optar por prestigiar o direito que essas pessoas têm de exercer livremente a atividade lícita que escolheram, ainda que tais atividades a alguém pareça humilhante.”
A sentença julgou improcedente os pedidos do MPF, acolhendo a argumentação da Record, cuja defesa foi patrocinada pelos advogados Edinomar Luis Galter e Marco Aurélio Lima Cordeiro.
  • Processo: 0014482-49.2009.4.03.6100
Fonte: Migalhas

Inteiro teor da decisão:


Autos com (Conclusão) ao Juiz em 21/05/2015 p/ Sentença

*** Sentença/Despacho/Decisão/Ato Ordinátorio

Tipo : A - Com mérito/Fundamentação individualizada /não repetitiva Livro : 1 Reg.: 596/2016 Folha(s) : 2776

Vistos em sentença.Trata-se de Ação Civil Pública por meio da qual o Ministério Público Federal objetiva a condenação da Rádio e Televisão Record S/A ao pagamento de indenização por danos morais causados ao interesse difuso, decorrentes da veiculação do programa "Show do Tom" com conteúdo inconstitucional, na importância de R$6.000.000,00 (seis milhões de reais) em favor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos Lesados, previsto no artigo 13 da Lei n 7.347/85. Pleiteia, ainda, a condenação da União Federal na obrigação de fazer consistente em notificar o Congresso Nacional para que os fatos praticados pela requerida Rede Record sejam observados para efeito de futura decisão quanto à renovação ou não da concessão da referida emissora. Narra o Parquet Federal, em suma, que em razão de representação efetuada em 02/12/2007, foi instaurado procedimento administrativo sob n 1.29.001938/2007-58, a fim de se apurar a prática de discriminação e preconceitos veiculados no programa "Show do Tom" da emissora de televisão REDE RECORD. Segundo a representante ao MPF - uma pessoa com nanismo - há um quadro no programa, protagonizado por um ator portador de nanismo, que satiriza o personagem principal, o que viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.Alega o MPF que, notificado a tomar providências, o Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, nos autos do procedimento administrativo n 08017.005057/2008-93, promoveu a reclassificação indicativa do programa, haja vista a "exposição de anões e homossexuais a situações humilhantes ou degradantes". Sustenta, contudo, o autor, o Ministério Público Federal, que a questão não é de mera reclassificação, mas de reparação. Ou, noutro dizer, a simples reclassificação do programa não é o suficiente para reparar o dano causado à coletividade, razão pela qual promove a presente ação visando a obter a condenação da emissora de TV ao pagamento de indenização por danos morais, na importância de R$6.000.000,00 (seis milhões de reais). Assevera que o só fato de ser o Ministério Público Federal o autor da ação já é causa suficiente para que a Justiça Federal seja a competente para a causa. Ademais, tratando-se a empresa ré de concessionária de serviço público federal e figurando a União Federal do polo passivo da demanda, a competência da Justiça Federal é indiscutível.Com a inicial vieram documentos (fls. 27/41). Citada, a Rádio e Televisão Record S/A apresentou contestação (fls. 62/142). Aduziu, preliminarmente, ausência de interesse processual do MPF e da União Federal e, consequentemente, a incompetência da justiça federal. Alega, ainda, ilegitimidade ativa do MPF. No mérito, sustenta que a Constituição Federal garante a liberdade de criação, isenta de qualquer censura, ainda mais em programa humorístico, em que não há "animus nocendi", mas sim "animus jocandi". Ademais, referido programa não é mais exibido em horário inapropriado para menores de 14 anos. Ao final, pugna pela improcedência da ação. Também citada, a União Federal apresentou contestação (fls. 144/153). Aduziu, preliminarmente, a ausência de interesse processual, pois o Ministério Público Federal, como instituição pública, pode, ele próprio, cientificar o Congresso Nacional dos termos da presente demanda, sem que para isso necessite recorrer ao poder Judiciário. No mérito, sustenta que a pretensão formulada em face da União Federal é inconstitucional, pois é vedado ao Poder Judiciário obrigar o Executivo a notificar o Poder Legislativo para a tomada de determinada conduta. Houve réplica (fls. 160/182). Instadas a especificarem provas, as partes nada requereram. Julgado, o processo foi extinto sem resolução de mérito com relação à União e, diante do fato de não figurar na lide qualquer das pessoas indicadas no art. 109 da CF, foi declarada a incompetência da Justiça Federal e determinada a remessa dos autos à Justiça Estadual (fls. 201/215). Contra referida decisão o MPF interpôs Agravo de Instrumento (fls. 221/236), cujo recurso foi provido para o fim de reconhecer a legitimidade passiva da União, bem como a competência da Justiça Federal para a causa - à vista do fato de ser o MPF, órgão da União, o autor da ação - e determinar o regular prosseguimento do feito (fl. 347).Vieram os autos conclusos.É o relatório.DECIDO.Vencida - porque decidida pelo E. TRF3 - a questão da competência da Justiça Federal para a causa, assim como a referente à legitimidade passiva ad causam da União Federal, aprecio as demais preliminares arguidas.Rejeito as alegações de ilegitimidade ativa do MPF e a de falta de interesse processual da instituição para a presente lide.É que, como se sabe, a vigente Constituição Federal cometeu ao Ministério Público relevantíssimas incumbências, entre elas a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais.Assim dispõe o art. 127 da Carta Magna:"Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". No caso dos autos, o autor aponta ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, erigido pela CF como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, esta desenhada pela Carta Magna como um Estado Democrático de Direito (art. 1.º, III). As condutas descritas pelo autor e por ele atribuídas à emissora-ré são aptas, em tese, a ofender tão caro princípio jurídico de acento constitucional, pelo que a legitimidade do autor é indiscutível.De outro lado, para bem desincumbir-se de suas relevantes atribuições, a mesma Lei Suprema dotou o Parquet de instrumentos processuais adequados e necessários, entre os quais o manejo de ação civil pública para a proteção do patrimônio e social e de outros interesses difusos e coletivos.Dispõe o art. 129 da CF:Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;Anoto, ao final deste tópico, que o fato de a representação ao MPF ter sido formulada por uma única pessoa física - que, por ser pessoa com nanismo, sentiu-se diretamente atingida pela programação exibida pela emissora-ré - não faz com que o dano coletivo (em tese) se converta em dano exclusivamente individual e nem, muito menos, tem o condão de caracterizar a ação do Ministério Público como de defesa de direito ou interesse individual.São as considerações que as tenho como suficientes à caracterização da legitimidade ativa do Ministério Público para a presente demanda, bem como para assentar seu interesse processual na causa.Feitas essas considerações, passo ao exame do mérito.Em suma, o Ministério Público Federal, pela lavra da zelosa Procuradora da República, hoje eminente Procuradora Regional da República da 3.ª Região, Dra. EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO - uma das mais laboriosas e competentes integrantes da instituição, cujo denodo com que se dedica à causa de minorias desfavorecidas e de pessoas fragilizadas por alguma circunstância é motivo de admiração de todos quantos acompanham seu trabalho incansável - propugna pela condenação da ré RÁDIO RECORD DE TELEVISÃO S/A em indenização dos danos morais coletivos por ela causados, por ser a responsável por programação - exibida em mais de uma oportunidade - cujo conteúdo revelou-se ofensivo à dignidade de pessoas idosas, mulheres e crianças, assim como de homossexuais e de pessoas com nanismo (anões). Quanto à corré União, o autor pretende vê-la condenada em obrigação de fazer consistente em notificar o Congresso Nacional "para que os fatos aqui narrados sejam observados para efeito de decisão quanto à renovação ou não da concessão da emissora em tela" (fl. 26).De início, anoto que não há dissenso entre as partes quanto aos fatos imputados, isto é, não há controvérsia acerca do conteúdo da programação objeto da ação. A divergência das partes cinge-se, apenas, quanto à efetiva caracterização de ofensa às pessoas mencionadas ou à potencialidade de a programação causar as ofensas imputadas: enquanto o autor sustenta a efetiva ocorrência da ofensa à dignidade humana das pessoas idosas, mulheres, crianças, homossexuais e pessoas com nanismo (anões), para a emissora-ré o conteúdo dos quadros, exibidos à guisa de "programas humorísticos", não tem a nocividade apontada.Vejamos os fatos:Num dos quadros do programa "Show do Tom", denominado "O Infeliz" - que seria uma sátira do programa "O Aprendiz", da mesma emissora, apresentado por Roberto Justus -, há, no entender do autor, a exposição, de maneira degradante, de pessoas com nanismo, o que, além de ofender o princípio da dignidade da pessoa humana, também ultrapassa os limites constitucionais postos à liberdade de expressão das emissoras de TV.A solução da demanda passa pela análise do papel das emissoras de televisão, como longa manus do Poder Público na consecução dos fins e objetivos do Estado, e dos limites impostos a essa atividade, em confronto com outros princípios constitucionais igualmente caros, como o da liberdade de expressão (por órgãos de imprensa) e o de liberdade de exercício de atividades lícitas pelas pessoas (inclusive aquelas que optam por ser objeto de chacota, situação em que, por vezes, se colocam atores, inclusive anões).Pois bem, a respeito do papel das emissoras de televisão e dos limites à liberdade de expressão a elas postos pela Constituição Federal, cabem ser feitas algumas observações que as tenho por pertinentes.A prestação de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens não é atribuída livremente à iniciativa privada. Trata-se de serviço público de competência da União, que pode explorá-lo diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, devendo o prestador desses serviços comportar-se como um longa manus do Estado no desempenho dessa atividade, e como se fosse o próprio Estado, dar cumprimento às regras e princípios constitucionais e legais. A Constituição e as leis impõem que os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens sejam prestados - pelo Estado, diretamente, ou por quem lhes faça as vezes, visando à consecução dos fins da República Federativa do Brasil, entre eles a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3.º, IV), sendo que a produção e a programação das emissoras autorizadas, concessionárias ou permissionárias deve atender ao princípio da preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e ao do respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (CF, art. 221, I e IV). Como é evidente, os serviços explorados pela ré - serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens - não são serviços livremente exercidos pela iniciativa privada. Trata-se de SERVIÇO PÚBLICO que, mercê dessa qualidade, acha-se submetido a princípios jurídicos, entre eles o da SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO, segundo o qual deve, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello , visar, "tanto no concernente à sua organização quanto no relativo ao seu funcionamento, o norte obrigatório de quaisquer decisões atinentes ao serviço serão conveniências da coletividade; jamais os interesses secundários do Estado ou os dos que hajam sido investidos no direito de prestá-los" (destaques do original).Assim, não pode aquele que presta os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, seja o Estado, ou alguém a quem o Poder Público tenha autorizado, concedido ou permitido, fazê-lo no seu próprio interesse ou na conveniência sua. Menos ainda desrespeitando a Constituição, máxime naquilo que a Carta da República tem como fundamental ao Estado Democrático de Direito, como é o respeito à dignidade da pessoa humana.Certo que "os serviços de radiodifusão têm finalidade educativa e cultural, mesmo em seus aspectos informativo e recreativo, e são considerados de interesse nacional, sendo permitida, apenas, a exploração comercial dos mesmos, na medida em que não prejudique esse interesse e aquela finalidade", conforme o estabelece o art. 3.º do Decreto 52.795/63, que regulamenta a Lei n. 4.117/62 e que, na organização de sua programação as empresas prestadoras dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens estão sujeitas a preceitos e obrigações, entre os quais, segundo o art. 28, 12 do Regulamento:a) manter um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a transmissão de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias à moral familiar e aos bons costumes. (Incluído pelo Decreto nº 88.067, de 26.1.1983)b) não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico (Incluído pelo Decreto nº 88.067, de 26.1.1983)Como tive oportunidade de dizer em ação envolvendo emissora do serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem, tais normas não perfazem meras notas de aconselhamentos. Ao contrário, como normas jurídicas que são, caracterizam-se como preceitos impositivos.E, nessa toada, dispõe o art. 67:"Art. 67. As concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão, observado o caráter educacional desse serviço, deverão na organização dos seus programas, atender entre outras às seguintes exigências: 1. manter um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a irradiação de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrários à moral familiar e aos bons costumes". Assim, qualificando-se os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens como serviços públicos, o Estado, ao prestá-los diretamente, deve fazê-lo com observância à disciplina legal estabelecida, cuja disciplina legal também submete o particular que em nome do Estado exerce tais serviços como autorizado, concessionário ou permissionário.Isso porque, não há como negar que os serviços públicos de radiodifusão de sons e imagens constituam importante instrumento na promoção do bem de todos, o que deve se dar sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, pelo que a CF impõe que a programação das emissoras de TV deve primar por finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e pelo respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.Bem por isso dispõe o art. 221, incisos I e IV da CF:"Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; (...)IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família". Vale dizer, antes mesmo do dever de observar os preceitos legais e regulamentares já apontados, os prestadores dos serviços de radiodifusão de sons e imagens estão, por imperativo constitucional, obrigados a produzir uma programação que tenha finalidades educativas, culturais e informativas, e, de todo modo, preocupada com o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.Assim, se essa fosse a totalidade da normatização referente ao tema de que ora nos ocupamos, restaria inconteste a infração apontada pelo autor, com as consequências pretendidas.Ocorre que o exercício da atividade das empresas prestação de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens também encontra outros balizamentos, entre os quais daquele que veda a censura - ojerizada pelo Estado brasileiro pós-redemocratização - e daquele que deve oportunizar às pessoas o livre exercício das atividades lícitas por elas escolhidas. É que a mesma Carta que impõe deveres às empresas de radiodifusão e de imagens e sons, também veda, em seu art. 5.º, IX, a censura:"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica, independentemente de censura ou licença".É um preço que a sociedade se dispõe a pagar, ainda que disso resulte, por vezes, situações desagradáveis.De outro lado, as pessoas são livres para o exercício de atividades lícitas. Dispõe o inciso XIII do mesmo art. 5º da CF:"É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".E é nesse contexto normativo em que deve ser aferida a apontada ofensa.Nesse passo, cabe o registro de que os programas aqui objurgados foram exibidos à guisa de "programas humorísticos". Sátiras que, como definidas por Houaiss caracterizam-se por composição poética ou discursos jocosos ou indignados contras as instituições, os costumes ou ideias contemporâneas; pela crítica de forma incisiva ou que ridiculariza vícios e imperfeições da sociedade, ou ainda o discurso picante ou maledicente; a zombaria ou a censura espirituosa a esses mesmos vícios e costumes das instituições ou da sociedade.E, sendo assim, não se pode desconhecer o relevante papel do humorismo na crítica social, aos governantes, ao arbítrio etc.Basta que nos lembremos da ira que Millor Fernandes e seu irreverente Pasquim causaram aos governos militares ...O que não quer dizer que as emissoras de serviços de transmissão de imagens e sons, concessionárias de um serviço público, estejam imunes à responsabilidade por danos cometidos à guisa de praticarem o humor.Mas, como disse, estando em jogo a incidência de vários princípios constitucionais e em conflito a proteção de diversos interesses juridicamente tutelados, ao magistrado, no exame da alegada ofensa, cabe cuidar para, em primeiro lugar, não atuar de modo a ceder espaço a qualquer tipo de censura à atividade artística e à criatividade a ela inerente, e, em segundo lugar, a não proteger apenas um dos direitos envolvidos esquecendo-se da proteção a outros também prestigiados pelo ordenamento constitucional. Tarefa não fácil, mas que deve ser buscada com equilíbrio e sem um viés moralista.Pois bem.A inicial narra a cena do quadro "Bofe de Elite" (uma sátira do filme "Tropa de Elite") em que figuram componentes de "uma tropa de soldados homossexuais de maneira estereotipada" e ainda aparecem figuras representadas por atores com nanismo (os personagens 01 e 02 - encenando militares da tropa "Bofe de Elite"), dos quais um deles chega a ser tratado de "rato de bueiro", o que, para o autor da ação, caracteriza ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, por menoscabar pessoa com nanismo, causando o dano moral do qual busca a reparação. Segue, no ponto, a narrativa da inicial (fl. 18), onde são destacados trechos (os negritados) que, no entender do autor, baseado na análise feita pelo Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, conteriam cenas/dizeres humilhantes aos grupos de pessoas mencionadas (no caso, homossexuais e pessoas com nanismo) e, portanto, infringidores de normas e princípios constitucionais e/ou legais. Transcrevo:"Um dos comandantes, o 69, diz à tropa que o Capitão Monumento fora sequestrado. O aspirante 011 diz: Ai que dor! Sabe o que dá vontade uma hora dessas? Ir pro meu quarto, subir no meu beliche e pular de costas em cima do anão! O anão, número 01, diz: Controle-se, senhor 011! Aprenda a conviver com quem se ama. Afinal de contas, vão os anéis e ficam os anões. 69 desfere vários tapas no rosto de 011, na tentativa de controlá-lo. 69 apresenta dois novos capitães, para auxiliar nas negociações com os sequestradores de Monumento: Cap. Ricardo e Cap. Matheus, que diz a 024: Talvez o 024 não saiba que comigo o buraco é mais embaixo. O anão diz: O meu também, senhor! Matheus diz: Cale a boca rato de bueiro. 01, prepare o facão. Matheus ergue o anão, que mostra o "facão", que nada mais é do que sua mão espalmada. 01 desfere um tapa no rosto de 24, que solta um grito. 69 mostra um DVD com imagens de Monumento no cativeiro, com as mãos amarradas e de joelhos. Um dos bandidos segura uma metralhadora, e diz que ninguém vai atrapalhar os planos de vender produtos do Bofe de Elite. O aspirante 171 se descontrola com as cenas, e 011 lhe desfere tapas no rosto para fazer o colega recuperar a postura.O Cap. Matheus manda alguns aspirantes fazerem uma roda e cantar "Atirei o Pau no Gato". Ao ser questionado por 011 o porquê desse exercício, Matheus diz que na hora da tensão eles saibam distinguir o que é gato e o que é pau. Os soldados soltam um grito: Uuuuii! Cap. Ricardo manda os aspirantes anões, 01 e 02 recitarem uma poesia. Depois de recitada, 02 recita outra poesia: O meu cavalo é Schimit, o capitão é meu amigo, o capitão é meu colega. Eu vou fazer com o capitão Ricardo o que o cavalo fez com a égua. Matheus fala:-Aspira 011!-Um atrás do outro! Pode falar, senhor!-Por favor, sugira um castigo para essas... coisas.011 manda os anões se posicionarem um na frente do outro, 01 aplica um tapa em 02. Todos aplaudem, inclusive o próprio 02. Em seguida, 02 desfere um tapa em 01. Todos aplaudem e riem. Cap. Matheus diz, olhando para 01 e 02: Chega de palhaçada, seus carinhas de batata."Sinceramente, o que identifico com clareza nos dizeres, muito mais que qualquer agressão a princípios jurídicos ou a preceitos de educação ou aos de deveres de respeito aos "valores éticos e sociais da pessoa e da família" é uma sucessão de cenas de mau gosto.E, convenhamos, para mau gosto não há remédio jurídico que dê jeito. Tampouco estamos autorizados a pretender a substituição dos critérios das emissoras pelos nossos. Tenho que o fato de os atores com nanismo serem estapeados - como o são também outros figurantes - não caracteriza ofensa a essas pessoas (cujos profissionais estão, como os demais personagens, exercendo a respectiva profissão de ator), tanto que vários outros são também estapeados pelo "Capitão", o que faz a alegria do público.Cabe indagar: se os estapeados fossem somente pessoas de estatura, digamos, convencional, esta ação teria sido proposta?Muito provavelmente, não!Ou seja, implicitamente se estaria a admitir que qualquer pessoa adulta de estatura "normal" que se proponha a ser estapeada no exercício de sua profissão (de ator), pode. Mas se essa pessoa for um anão, não pode. O Estado deve protegê-la contra o estapeamento, digamos, artístico.Mas é de se indagar: o que autoriza/legitima a opção de uma instituição do Estado de buscar a proteção do ator-anão estapeado em cena de programa humorístico, mas não fazer o mesmo em relação aos demais atores (de estatura "normal") também estapeados? Não sei dizer, mas talvez a busca de proteção aos atores-anões (e não aos atores "grandes") decorra de um raciocínio equivocado e mesmo preconceituoso, consistente em supor, ainda que inconscientemente, que o anão, por essa sua condição, não seria dotado de plena capacidade de autodeterminação, a demandar, assim, especial atividade protetiva do Estado, ao ponto deste excluir a possibilidade do exercício de atividades ridicularizantes, as quais somente poderiam ser exercidas por pessoas de estatura "normal", porque (resta implícito) estas, sim, são dotadas de plena capacidade de autodeterminação. Em outros dizeres: a proteção se justificaria porque o anão seria uma pessoa com reduzida capacidade de autodeterminação, o que é um equívoco.Sem dúvida, a questão também merece ser olhada por esse ângulo.Faço aqui um parêntesis para trazer à baila da "atração" conhecida como arremesso de anões, atividade praticada - e legalizada - em diversos países civilizados. É por demais conhecida a polêmica que se instalou numa pequena cidade francesa nos arredores de Paris. Ali, um estabelecimento comercial tinha por atração a atividade de arremesso de anões. Ganhava o prêmio quem mais longe arremessasse o anão. Certa feita, o prefeito da cidade proibira a atividade, por considerá-la ofensiva à dignidade humana dos anões envolvidos na atividade. O estabelecimento, então, recorreu da decisão à jurisdição administrativa do Estado francês, tendo como correcorrente (litisconsorte) o próprio anão arremessado que dizia (sem trocadilho) que não se sentia diminuído em participar do evento como o objeto a ser arremessado. O estabelecimento e o anão obtiveram ganho de causa. A atividade foi considerada lícita. O prefeito, então, recorreu ao Conselho de Estado francês (as questões administrativas na França são resolvidas ao largo da jurisdição), que restabeleceu a decisão administrativa, o que redundou na interdição da atividade em nome da ordem pública e da dignidade da pessoa humana, sob o argumento de que o indivíduo deve ser sujeito de Direito e não objeto de Direito, não podendo, assim, ser arremessado como se fosse uma coisa, um objeto. O anão, então, levou o caso à Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que em setembro de 2002 considerou que a decisão que interditava a atividade não era discriminatória aos anões, mas, ao contrário, era ela necessária para manutenção da ordem pública, isso além de tecer considerações a respeito da dignidade da pessoa humana. Nos Estados Unidos da América, onde a atividade já foi bem popular na década de 1980, um deputado da Flórida apresentou, em 2011, projeto de lei que pretendia legalizar o arremesso de anões, sob o fundamento de que a proibição, que era "um exemplo de estado Big Brother", impedia a criação de empregos às pessoas com nanismo .Por esse relato é possível perceber que a questão não é singela. Envolve o conflito entre direitos (os de livre criação artística e cultural e de livre expressão do pensamento, de um lado, versus o direito de autodeterminação e de livre exercício da atividade profissional por pessoas com nanismo, de outro).E nesse conflito entre direitos e interesses jurídicos tenho que a solução de maior equilíbrio é aquela que opta por não exercer qualquer tipo de censura ou aparência dessa abominável prática às atividades "culturais" veiculadas por meio de programação humorística promovida por rede de televisão.Convenhamos que as cenas descritas, as quais o autor da ação considera ofensivas à dignidade das pessoas com nanismo, são muito mais cenas de puro mau gosto que refletem, para nossa tristeza, o precário grau de educação de nossa sociedade. E o mais espantoso é a constatação de que elas agradam a um número significativo de pessoas, a teor da grande audiência do programa. Que lástima, do que riem essas pessoas????Também não vejo que as demais cenas dos programas humorísticos tenham ultrapassado os limites do mau gosto.Diz o autor que as cenas descritas abaixo, do quadro "Festival de Piadas", seriam desrespeitosas à dignidade da pessoa idosa, a mulheres e a crianças. Descrevo as mencionadas cenas, a primeira delas em que um "candidato" ("Ivo") é chamado para contar sua piada:"Ele começa a contar a piada de um senhor idoso que foi pegar um ônibus, mas não havia lugar para sentar, pois um pai entrara antes com seus filhos, que ocuparam todos os lugares vagos. O idoso acaba caindo devido a freadas do ônibus. O pai das crianças fala: O, véio, se o senhor tivesse colocado uma borracha na ponta da sua bengala, o senhor não tinha caído. Ivo imita o idoso respondendo: Ah é? E se tu tivesse colocado uma borracha na ponta da sua, teria lugar pra sentar, filho duma égua! A plateia aplaude e ri."Nesse quadro, por mais que a sátira envolva um indivíduo pertencente a um grupo vulnerável (idoso), não se pode descartar a validade da crítica que a esquete faz à paternidade irresponsável, que, inegavelmente, constitui um dos graves problemas sociais com que se depara nossa sociedade atual. Na cena abaixo transcrita, o comediante "Belo" diz que vai contar uma piada da "Maria Gasolina", a qual, segundo a inicial, contém, além da utilização de linguagem chula e obscena, ofensa à figura feminina. Eis a cena:"Levei ela pro quarto. Lá ela tirou a roupa, eu tirei também, nós ficamos nuzes. Ela olhou pra mim e disse (imitando voz feminina): "Santana... Santana! Vem pra tua Mercedes, vem! Vem logo! Meu ômega! Eu to com a Vitara tão grande! Tira o blazer, vai! Coloca a mão no meu ônibus e me ajipe (Belo abaixa um pouco e coloca a mão nas nádegas). Olha parati (o humorista faz um gesto ressaltando sua pélvis). Cherakee! Enfiat uni! Ai, D-10, D-20, D -1000 (enquanto fala gemendo, Belo rebola com a mão no joelho). Ai, me chama de besta, de perua, meu diplomata, meu Del Rey, meu puma, meu jaguar! Ai, corsa... corsa.. Ai, que kadett gostoso! Ai, ai, que fiesta! Eu quero sentir tua galaxy... Opala! Opala seu mitsubicha Tu nem tempra, nem ford nem sai de cima". Aé eu disse: Minha filha, do jeito que eu tô eu vou até pra Brasília! [...].O mau gosto persiste, admito, mas dai a considerar que as cenas caracterizam-se como ofensivas (do ponto de vista jurídico, com as implicações graves dai decorrentes) à dignidade das mulheres, vai uma distância grande.Prefiro debitar esse dissabor à conta de vivermos em uma democracia, regime jurídico que pressupõe o exercício da tolerância.As demais cenas vão nesse mesmo diapasão.A que se segue também é uma piada do mesmo quadro humorístico contada pelo ator "Belo":"Eu saí com a gatinha semana passada. Pense numa gatinha... A mulher tudo em cima, Os peitos em cima da barriga, a barriga em cima das penas, lindíssima. Porque a mulher tem vários tipos de peito: Peito maçã, peito uva, peito pêra. O dela era peito pêra, pêra cintura. Ai eu disse: Minha filha, eu dou valor a um strip-tease. Ela disse: É comigo mesmo. Strip-tease é comigo mesmo. Quanto é o programa? É oito reais. Oito reais? Sim. Com strip-tease eu aumento mais cinquenta centavos. Vai me quebrar. Aí levei ela pro quarto Eu disse liga aí!. Ela ligou aquelas vitrolas grandonas voz de ouro. Aí começou o strip-tease. Começou a tirar o sutiã. (Belo simula um strip-tease, fingindo ser uma mulher tirando o sutiã, de forma cômica). Quando tirou a mão daqui, os peitos.. ó que chão frio! Ela foi tirar a calcinha (Belo simula dessa vez uma mulher tirando a calcinha de forma cômica e exagerada) Ai, eu to tão excitada!. Jogou a calcinha e a calcinha pregou na parede. Pense numa saúde. Eu disse: Minha filha, deite na cama. Ela disse Eu vou deitar mesmo... Belo debaixo da cama tem uma caixa de algemas. Algema aqui meu braço?. Eu disse Na hora e algemei o braço dela.Agora algema aqui meu outro braço. Eu algemei na cama. Ela disse: Belo, agora algema minha perna?Eu disse algemo. Ela disse Agora, algema a outra?. Eu algemei. Ela disse: Amor, faça comigo o que você é acostumado a fazer com as outras? Ai eu dei dois tapas na cara dela e levei a televisão, vídeo-cassete, mobilete..."O que dizer? Deveras, a narrativa chega a ser constrangedora, mas não a ponto de configurar a ofensa pretendida pelo autor da ação, quando confrontada com todo a conjunto de princípios e normas constitucionais e legais que envolvem a atividade de rádio e televisão.O mesmo ocorre relativamente a cenas que a inicial pretende que sejam ofensivas à dignidade da pessoa idosa ou a homossexuais. Eis as cenas objurgadas, as primeiras em que aparecem referências jocosas a pessoas idosas e as últimas a homossexuais:"- Menino, quando a vovó baixou as calças, eu peguei aquele negócio, eu olhei bem lá no... eu disse Vovó, não dá não! Ela disse Dá! Coloca, pelo amor de Deus! Eu disse Vem cá, vovó, é pra colocar nesse da boca murcha ou nesse das orelhas arriadas?""Cancelamos o evento lá da (a palavra que se segue é coberto por um barulho), certo? Cancelamos o evento. Disse, não vou levar ele mais pras meninas porque não tem mais condição de conhece as meninas, de afogar o ganso. Levei ele lá pra casa da minha mãe, minha mãe tem 80 anos. Andei duas quadras com esse vagabundo na chuva. Quando cheguei lá em casa, minha mãezinha, 80 anos, com febre, abriu a porta. Ele olhou pra mamãe e disse:Ô (a palavra que se segue é coberta por um barulho, mas é possível deduzir que ele diz a palavra "puta". A platéia ri e aplaude.) feia! Eu disse: Essa é minha mãe, é a minha vida, é meu tudo! Ele falou pra mamãe: Eu vou comer por consideração!.""-Dinheiro? Tá aqui o dinheiro" (Titela [o humorista] gesticula, como se fosse um homem colocando seu pênis à mostra. A plateia ri). Titela se abaixa e coloca a mão nas nádegas, dizendo: Bota no caixa!""-Leva ele lá pra dentro, dá umas chibatadas e traz aquela outra bicha, que aquela fala a verdade". Levaram-no do local e "meteram a chibata". Por fim, o delegado pergunta ao outro homossexual se "tem condições de enfiar um relógio no fiofó", e ele responde: "Depende é despertador ou de parede?".É evidente que as cenas são abjetas, de exagerado mau gosto, repito, mas a própria subscritora da inicial admite que elas se situam numa zona de incerteza, quanto a configurarem ofensa ou a sua coibição configurar-se como censura.A ilustre Procuradora da República admite expressamente que "No caso em tela ... há extrema dificuldade em se distinguir o que é censura do que é defesa da cidadania ofendida por práticas veladas de discriminação" (fl. 166).E ela tem toda razão. Há mesmo imensa dificuldade em se fazer essa distinção e, diante dessa dificuldade, tenho que a atividade judicante, mesmo considerando as cenas como sendo de muito mau gosto, deve optar por não praticar censura e, no caso dos atores anões, optar por prestigiar o direito que essas pessoas têm de exercer livremente a atividade lícita que escolheram, ainda que tais atividades a alguém pareça humilhante.Por todas essas considerações, tenho que a ação não pode prosperar.Isso posto, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS, extinguindo o processo, com resolução mérito, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015). Custas ex lege. Sem condenação em honorários advocatícios, nos termos do artigo 18 da Lei n. 7.347/85.P.R.I.

Disponibilização D.Eletrônico de sentença em 09/09/2016 ,pag 0

Nenhum comentário:

Postar um comentário