A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF), publicou nota técnica que traz uma análise jurídico-constitucional sobre a liberdade artística e a exigência de proteção de crianças e adolescentes contra a violência sexual e contra conteúdos inapropriados às suas faixas etárias.
O documento foi encaminhado aos ministros da Cultura, da Justiça e dos Direitos Humanos, e a órgãos como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Uma cópia também foi entregue ao Instituto Brasileiro de Museus - autarquia federal responsável pela política nacional na área -, e a dezenas de museus, fundações e institutos de arte em todo o país, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR).
A nota técnica traz um amplo conjunto de argumentos jurídicos na defesa tanto dos direitos de crianças e adolescentes quanto da liberdade de expressão em suas múltiplas formas - tendo em vista os recentes episódios de cerceamento a obras e performances artísticas classificadas como "imorais" ou de natureza "pedófila".
"O objetivo principal do documento é oferecer elementos que permitam melhor definir o conteúdo e os limites da liberdade de expressão artística perante o direito fundamental de crianças e adolescentes à proteção integral. Parte-se da premissa de que, em caso de possível colisão entre direitos fundamentais, deve o intérprete buscar soluções proporcionais, razoáveis e amparadas em argumentos jurídicos, preservando-se, ao máximo, o núcleo de cada direito envolvido", apontam a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e o coordenador do Grupo de Trabalho Direitos Sexuais e Reprodutivos da PFDC, o procurador da República Sérgio Suiama.
Legislação brasileira - O documento esclarece que o direito brasileiro não criminaliza a pedofilia (entendida como um transtorno mental), mas sim a violência sexual contra crianças e adolescentes. Os crimes estão previstos no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e envolvem a prática de atos lascivos com ou na presença de crianças, ou ainda a produção, comercialização, distribuição e posse de fotografias e imagens de crianças e adolescentes reais em uma cena de sexo explícito ou pornográfica.
A nota técnica salienta, porém, que nem toda nudez, adulta ou infantil, envolve a prática de ato lascivo ou tem por fim a confecção de cena ou imagem sexual. "Não apenas em culturas indígenas, como também em muitas práticas comuns no Brasil e em outros países, a nudez está desprovida de qualquer conteúdo lascivo. É o que ocorre, por exemplo, com o naturismo", registra o documento.
Os procuradores ainda ressaltam que, no âmbito da artes, a nudez e sua representação fazem parte do registro de todas as civilizações, e que apresentações envolvendo a nudez do artista ocorrem com frequência em museus de arte contemporânea e moderna do mundo.
A nota da PFDC registra também que, diversamente do que se tem dito a respeito do assunto, segundo o critério adotado pelo próprio órgão do Ministério da Justiça encarregado de fazer a classificação indicativa para a TV, a nudez não-erótica (isto é, exposta sem apelo sexual, tal como em contexto científico, artístico ou cultural) não torna o conteúdo impróprio para crianças, mesmo as menores de 10 anos.
O documento da PFDC ainda ressalta que, segundo a Constituição e o ECA, a classificação etária possui natureza meramente indicativa, pois está voltada a garantir às pessoas e às famílias conhecimento prévio para escolher diversões e espetáculos públicos que julguem adequados. Por ser "indicativa", a classificação efetuada pelo poder público não possui força vinculante; assim, não cabe ao Estado (nem aos promotores do espetáculo ou diversão) impedir o acesso de crianças ou adolescentes a eventos classificados como "inadequados" à sua faixa etária, especialmente quando estejam elas acompanhadas por seus pais ou responsáveis. Compete exclusivamente a estes decidir sobre o acesso de seus filhos menores a conteúdos televisivos e a diversões e espetáculos em geral, conforme decidido pelo STF no julgamento da ADI 2.404/DF, referente à classificação indicativa da TV.
Liberdade de expressão artística - Além de abordar os crimes relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes, a nota técnica da PFDC traz um análise detalhada a respeito dos limites da liberdade de expressão em geral, e da liberdade artística, em específico.
O documento da PFDC aponta a jurisprudência do STF referente a "posição de preferência" da liberdade de expressão em relação a outros direitos fundamentais, inclusive para abranger manifestações "desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares" (ADPF 187/DF).
Com relação à liberdade artística, a Nota Técnica registra que, segundo jurisprudência de outros tribunais constitucionais, as manifestações artísticas estão sujeitas a um trabalho de interpretação, e uma visão geral do trabalho do artista constitui um elemento indispensável dessa interpretação. Portanto, não é permitido remover partes individuais de uma obra de arte do seu contexto e sujeitá-los a um exame independente para se determinar se devem ou não ser considerados como delitos.
Em favor de uma maior tolerância social com relação à liberdade artística, a Nota Técnica cita obras hoje consagradas que, à época em que foram apresentadas, causaram forte reação social contrária, e mesmo ações penais por parte do Ministério Público, como ocorreu com o aclamado romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary.
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